domingo, 25 de fevereiro de 2024

O filme Ferrari

 


Quando o horripilante 'Driven' foi lançado em 2001, criou-se uma espécie de barreira sobre filmes tendo o automobilismo como pano de fundo. A película estrelada por Sylvester Stallone na virada do milênio foi tão ruim, que dizem que o fracasso do filme foi um marco também para o final da CART, no final de 2002. Porém, houveram grandes filmes de automobilismo no passado e a chegada de 'Rush' e 'Ford x Ferrari' durante a década de 2010 acabou com o ranço trazido por 'Driven' e relançou novamente os filmes sobre esporte a motor como um grande chamariz para Hollywood. E Ron Howard e James Mangold deram a dica de como fazer ótimos filmes sobre automobilismo, utilizando belas histórias já existentes e a explorarem da forma mais fiel possível. Mais ou menos na época em que Stallone 'corria' nas ruas de Chicago, o conceituado diretor Michael Mann começou a pesquisar sobre uma cinebiografia de Enzo Ferrari, tendo como base o livro 'Ferrari, o homem por trás das máquinas', escrito por Brock Yates.

Os já clássicos 'Rush' e 'Ford x Ferrari' tem como paralelo terem a Ferrari como a equipe antagonista nesses filmes e Mann, usando o sucesso dessas películas, resolver trazer uma nova luz não apenas na famosa equipe italiana, mas em seu fundador. Felizmente tenho em mãos o livro de Yates (https://jcspeedway2.blogspot.com/2021/04/o-agitador-de-homens.html) e assistir ao filme após lê-lo me trouxe ainda mais curiosidade. O livro desconstrói a imagem de um fidalgo, um cavalheiro do século 20, que Enzo Ferrari tinha. Na verdade, Enzo era vulgar, mulherengo e pouco emotivo, colocando sua equipe acima de tudo, inclusive de sua vida pessoal e de todos aos seu redor. Contudo Enzo Ferrari demonstrou uma resiliência incrível para sair da classe média baixa da Itália para realizar o seu sonho de se envolver com o automobilismo e conseguiu ainda mais, criando uma marca mitológica no mundo moderno.

O livro de Yates tem 548 páginas e contar toda a história de um personagem complexo como Enzo Ferrari durante duas horas e meia poderia causar alguns problemas de correria no roteiro. Por isso, Mann resolver escolher um pequeno período da vida de Enzo, mas nem por isso menos turbulento. O amado Dino Ferrari havia acabado de falecer e como sempre, a saúde financeira da empresa não estava muito bem. Contudo, a empresa Ferrari sempre funcionou no limite, com Enzo pensando na gestione sportiva em primeiro lugar, relegando a galinha de ovos de ouro do seu negócio, que era a venda de carros esportivos. Ou seja, a narrativa do filme de que a Ferrari estava prestes a falir é um pouco exagerada, tanto que a Ferrari era a atual campeã da F1, fato citado de forma bastante sublimar quando Enzo Ferrari pergunta à Orsi se a Maserati estava quebrada 'porque Fangio estava pegando todo o dinheiro da equipe'. Não faltaram essas licenças poéticas para mostrar como Enzo Ferrari se portava. A cena em que Enzo praticamente contrata Alfonso de Portago enquanto o corpo de Eugenio Castelloti jazia na pista de Modena não aconteceu (a morte de Castellotti no teste, sim), mas mostrava bem o modus operandi de Enzo com seus pilotos, onde ele os levava ao limite do limite. O filme mostrou Enzo negociando com Gianni Agnelli enquanto a Mille Miglia ocorria, algo que só ocorreu praticamente um década depois do período mostrado na película, mas que evidenciava a forma implacável com que Enzo tratava seus negócios. Senti falta da enorme rivalidade existente entre Ferrari e a família Orsi, dona da Maserati. Claro que os Orsi foram citados no filme, mas o livro mostrava um ódio mútuo entre os donos das duas montadoras sediadas na época em Modena.

A vida dupla de Enzo foi bem focada, com as brigas constantes com Laura e às idas à casa de Lina Lardi, numa casa confortável fora de Modena, onde parecia que Ferrari encontrava um pouco de paz ao lado do filho Piero em meio ao caos que o rodeava. A atuação de Adam Driver como Enzo Ferrari mostrava o sarcasmo do italiano e sua frieza, mas como o livro mencionou vários vezes, Enzo era propenso a ataques de cólera e Driver não mostrou isso em nenhum momento. Porém, quem roubou a cena foi mesmo Penélope Cruz no papel de Laura. A atriz espanhola deu um show de interpretação, ao mesmo tempo que seu rosto exalava angústia com a morte recente do filho e os problemas da empresa, Cruz mostrava uma Laura tão ou mais sarcástica quanto Enzo, arrancando boas risadas da plateia, que praticamente lotou o cinema na sessão em que eu estava. O filme tomou vários cuidados com a produção, como os carros da época e uma belíssima fotografia. Porém, em 1957 Enzo e Laura já tinham quase sessenta anos e ter uma cena tórrida de sexo, digamos, não convém aos dois naquele momento. A cena da morte de Afonso de Portago foi um capítulo à parte, mostrando com crueza o terrível acidente que praticamente eliminou a Mille Miglia do mapa, por sinal, algo que o filme não contou em suas cenas pós crédito.

'Ferrari' é um ótimo filme, muito bem produzido, mas muitas vezes se tornou arrastado demais, ficando cansativo para quem não entendia de automobilismo e sem a mesma dinâmica vista em Rush e Ford x Ferrari. Penélope Cruz merecia, no mínimo, uma indicação à melhor atriz coadjuvante no Oscar, algo que inexplicavelmente não ocorreu. Para quem ama automobilismo, foi legal ver nomes como Peter Collins, Jean Behra, Fangio, Stirling Moss e Von Trips citados no filme. Algumas cenas marcantes daquela Mille Miglia foram mostradas com muita fidelidade, como a apresentação de Peter Collins aos jornalistas antes da largada da Mille Miglia e o famoso 'beijo da morte', dado pela atriz Linda Christian em Alfonso de Portago pouco tempo antes do espanhol morrer tragicamente. Se haver um pódio sobre os grandes filmes tendo o automobilismo como pano de fundo no século 21, 'Ferrari' fica num honroso P3, mas muito longe de fazer feio nesse filão cada vez mais lucrativo e gostoso de se assistir. Que venham mais filmes sobre automobilismo!

Um comentário:

  1. Andei a ler e como podes imaginar, vi o filme logo no inicio do ano, quando ele apareceu por aqui, em Portugal. Tendo a concordar com o que escreves, e ao contrário de ti, tenho a autobiografia do Ferrari "As Minhas Amargas Vitórias".

    Achei o filme foi bem verosímil, as cenas de corrida foram um pouco "fabricadas" (o GP de França de 1957 foi em Rouen e as cenas foram filmadas em Imola) e houve quem me dissesse que o acidente de Guidizzolo foi um pouco "pornográfico" por ter mostrado as coisas como aconteceram.

    Francamente, concordo contigo: "Ferrari" está no pódio dos melhores filmes de automobilismo que Hollywood fez nos últimos 60 anos. Mas suspeito que este filme que o Brad Pitt anda a fazer sobre a Formula 1 possa ser um desastre... espero que não!

    ResponderExcluir