É relativamente comum vermos na F1 um piloto sendo campeão tendo disparadamente o melhor carro, mas com várias pessoas apontando que o melhor piloto era outro. Um exemplo claro aconteceu no final dos anos 1990, quando Hill, Villeneuve e Hakkinen foram campeões, mas ninguém contestava que o melhor piloto daquele momento era mesmo Michael Schumacher. Na moto isso não acontece com tanta frequência, pois o piloto ainda faz muita diferença em cima de sua máquina. Porém, 2022 vimos isso acontecer na MotoGP. Já tendo conquistado um título mundial na Moto2, Bagnaia era a ponta de lança da Ducati para esse ano e mesmo com algumas quedas, o italiano usou a força da montadora italiana para superar o atual campeão Fabio Quartararo ao longo de 2022, chegando na última prova com uma boa diferença de pontos, porém, o francês, até mesmo pelo o que fez com o equipamento que tem em mãos, pode ser considerado de forma indubitável o melhor piloto do ano. Quem venceria, homem ou máquina? Deu a máquina! Bagnaia fez uma corrida calculada para quebrar várias marcas e ser o novo campeão da MotoGP.
Mesmo com Bagnaia tendo a faca e o queijo na mão, toda decisão é tensa e Valencia tinha um clima pesado, afinal, a Ducati precisava acabar com quinze anos de jejum, mesmo que claramente a montadora de Bologna tenha a melhor moto do pelotão, com boa vantagem para a Yamaha de Quartararo, que como em toda a temporada, foi o cavaleiro solitário da Yamaha frente uma oposição ampla da Ducati, que tinha dois pilotos na primeira fila. No entanto, quem saiu feito um foguete na largada foi Alex Rins, que fazia sua despedida com a Suzuki. A marca de Hamamatsu deve estar se perguntando até agora se fez mesmo a melhor escolha em decidir pelo abandono da MotoGP. Rins foi perfeito da primeira a última volta, vencendo a corrida do adeus (ou até logo?) da Suzuki da MotoGP. Isso por si só já ajudava sobremaneira Bagnaia, pois Quartararo precisava da vitória de qualquer maneira. E já nas primeiras voltas, Bagnaia quis garantir que Fabio não venceria. Numa disputa quente entre os dois contendores pelo título, Bagnaia chegou a tocar em Quartararo e perder uma aleta, mas fez com que o piloto da Yamaha perdesse muito tempo para o primeiro pelotão formado por Rins, Martin, Márquez e Miller. Essa diferença foi crucial.
Correndo com o regulamento debaixo do braço, mas com a moto tendo problemas de equilíbrio pela aleta perdida, Bagnaia pouco brigava com quem chegava perto dele, enquanto Quartararo tentava de todas as formas tirar a diferença para os primeiros colocados. Fabio ainda contou com as quedas de Márquez e Miller, que quando foi ao chão com uma Ducati vermelha, certamente fez corações pararem na Itália. Contudo Quartararo não contou com a força da KTM de Brad Binder, que após ultrapassar Bagnaia foi à caça do pelotão dianteiro, ultrapassando não apenas Quartararo, como também Martin, mas não tendo tempo para buscar Rins. Tendo bastante cuidado na briga com Bagnaia, Binder perdeu alguns segundos que lhe fizeram falta na bandeirada. Bagnaia ainda caiu para nono, numa corrida burocrática, mas era mais do que o suficiente. Foram sete vitórias ao longo do ano e uma impressionante virada sobre Quartararo no campeonato, onde Pecco chegou a estar 95 pontos atrás do francês. O início de ano para Bagnaia não foi dos melhores, com algumas quedas, corridas sem muito brilho e a boa fase de Bastianini, com uma Ducati de 2021. Pecco foi se recuperando, mostrando a força da Ducati, que com seu pelotão foi minando as forças da Yamaha, que se apoiava unicamente em Quartararo, já que seus demais pilotos fizeram temporadas pífias.
Na medida em que foi colocando a cabeça no lugar e, principalmente, parou de cair, Bagnaia partiu para uma recuperação irresistível. Sem armas para se defender, restou à Quartararo andar no limite do limite de sua Yamaha e isso causou alguns erros do francês, como na Austrália. Sem forças para se recuperar e com uma moto bem inferior à Ducati e seu esquadrão, Quartararo viu Bagnaia passar por cima de sua vantagem construída com muita competência no começo do campeonato, não sem antes fazer belas corridas, como na Malásia e hoje. Falta à Yamaha ter mais potência e piloto melhores para ajudarem Quartararo, que passou o ano órfão de ajuda de companheiros de equipe, sendo que em 2023 somente terão duas Yamahas no grid. A Honda sofreu com uma moto mal nascida e com Marc Márquez ainda às voltas do seu problema no braço direito machucado em 2020, que o fez perder várias corridas nesse ano, a montadora nipônica teve sua pior temporada na MotoGP em anos, mas com Márquez quase recuperado, ele ainda poderá fazer a diferença, como fez hoje, andando no pelotão da frente, enquanto seus companheiros de equipe mal pontuavam. A KTM se mostrou muito irregular, com duas vitórias de Miguel Oliveira em corridas com chuva e boas exibições de Binder, misturado com corridas em que os laranjas nem chegavam no top-10. Próximo ano a equipe terá a presença de Jack Miller e terá uma equipe de suporte com a Gas Gas, com um decepcionante Pol Espargaró retornando à casa austríaca, ao lado do novo campeão da Moto2, Augusto Fernández. A Aprilia mostrou um imenso crescimento para 2022 e Aleix Espargaró foi um dos protagonistas do campeonato a maior parte do ano, mas se é um batalhador, falta à Aleix talento e velocidade para fazer frente aos grandes pilotos da MotoGP. Espargaró foi constante, com hoje sendo seu único abandono, mas a Aprilia mostrou força em 2022 e terá em Maverick Viñales sua reserva técnica para 2023, junto à nova equipe satélite RNF, que terá Miguel Oliveira.
Por fim, todo o investimento em inovações técnicas da Ducati valeu à pena. Não faltaram asas, aletas e apetrechos aerodinâmicos para compensar a falta de ciclística na moto, já que os italianos imitam o que a Ferrari fazia até a década de 1980, onde o motor era o mais importante. Desde o já longínquo título de Casey Stoner em 2007, a Ducati se caracterizou pela enorme potência do seu motor e a pouco maneabilidade da moto. Foram colocados vários pilotos na Ducati, incluindo Valentino Rossi e Jorge Lorenzo, mas a situação não mudava, com a sensação de que apenas Stoner teve condições de domar a Desmodedici. Porém, a chegada de Luigi Dall'Igna ao corpo técnico da Ducati fez com que a moto fosse melhorando a ponto de Andrea Doviziozo ter dado um trabalho não esperado à Márquez no auge dos poderes do espanhol. A Ducati ia evoluindo, mas faltava alguém para liderar a equipe, principalmente com a saída de Doviziozo. Bagnaia era mais um pupilo de Rossi e rapidamente chegou à Ducati oficial de fábrica, após bons anos no time satélite. Ao contrário dos seus compatriotas, Bagnaia é bem cerebral, bebendo da fonte de Doviziozo, antigo piloto da equipe. A Ducati tinha a melhor moto de 2022 e ainda contou com seus forte esquadrão de oito pilotos, que muitas vezes dominaram o top10 do grid e das corridas.
Mesmo com a força de Miller, Bagnaia usou a inconsistência do carismático australiano para liderar a Ducati desde o final de 2021 e com uma recuperação espetacular, bateu Quartararo. Com sete vitórias em 2022, Pecco foi o maior vencedor do ano, além de quebrar alguns jejuns, como o de títulos da Ducati, o de títulos da Itália (desde 2009) e sendo o primeiro italiano a ser campeão com uma moto italiana, algo que não acontecia desde 1972 com o legendário Giacomo Agostini e sua MV Agusta. Bagnaia pode não ter o talento de Quartararo e de um Márquez recuperando suas forças, mas liderou a Ducati, que lhe deu a melhor moto do pelotão. Foi um título merecido tanto para Pecco, como, principalmente, para a Ducati.