2022 nem foi um ano para se lembrar em termos de futebol. Na verdade, tudo que tinha de dar errado, deu terrivelmente errado para mim no pébol. Por isso, essa Copa do Mundo estranha, no final do ano e num país que literalmente comprou o direito de sediar a Copa para abafar os inúmeros gritos de trabalhadores mortos construindo estádios e as vítimas de injustiças que assolam o Catar com uma liberdade impressionante. Pouco era esperado da Copa no Catar em 2022, mas o futebol entregou uma edição simplesmente inesquecível para quem acompanhou a apoteose de uma lenda do esporte e inúmeras histórias incríveis.
Um fato que ajudou bastante a causa catari foi que, forçosamente realizada no final do ano por causa do clima inclemente no Catar no tradicional meio do ano, a grande maioria dos jogadores chegaram para a Copa bem próximo do ápice físico, ao contrário do que normalmente acontece, quando os jogadores se apresentam às suas seleções no final de uma desgastante temporada. Isso ajudou que o nível técnico dessa Copa fosse uma das melhores dos últimos trinta anos, provavelmente ficando atrás apenas de 1998 e 2014. Ou até mesmo ao lado dessas marcantes edições. O início provava que seria uma Copa diferente. Logo na primeira rodada, Argentina e Alemanha perdiam em suas estreias. Enquanto a Argentina se recuperou, os alemães ficaram pelo caminho pela segunda Copa consecutiva, voltando para casa ao fim da primeira fase. Mas os tedescos não seriam os únicos. Sensação em 2018, a famosa geração belga decepcionou com uma base envelhecida e, principalmente, desunida. Após uma apertada vitória contra o inofensivo Canadá, uma derrota merecida contra Marrocos e um empate contra a Croácia significou que os belgas retornaram à Flandres pensando quando terão uma geração tão boa. O Uruguai ainda apostava na sua dupla de ataque Suérez-Cavani, mesmo que um ou outro ficando no banco. Uma interessante fornada de jovens uruguaios no meio-campo era a esperança de uma boa mescla, mas um empate pálido com a Coreia do Sul e uma derrota para Portugal praticamente definiu a sorte charrua. Mesmo vencendo Gana, imitando a mitológica quartas-de-final de 2010, serviu para o Uruguai, que saíram da Copa se perguntando o motivo do treinador (evidentemente demitido) não ter colocado Arrascaeta antes no time titular.
Todas essas eliminações abriam o caminho para o Brasil. O grupo do Brasil não era um mar de rosas, mas longe de um grupo de morte, porém a situação dos mata-matas era preocupante, com a seleção brasileira tendo um prospecto de pegar apenas campeões do mundo até uma possível final. Com as saídas de Uruguai, Alemanha e Bélgica, o caminho parecia livre rumo à semifinal de sonho contra a Argentina. Porém, faltou avisar aos croatas de Luka Modric. O Brasil chegou ao Catar ainda no polarizado clima eleitoral e tudo isso levava a críticas ou elogios, de acordo com a conveniência política de A, B ou C. Mas o Brasil deu motivos. O dispensável episódio da 'carne de ouro' pegou muito mal. O fato de trazer um cabelereiro no lugar de um psicólogo também chamou atenção para um grupo que dançou muito, mas pouco fez em campo. Tite era uma unanimidade como o melhor treinador brasileiro e o gaúcho mantém esse status, demonstrando bem como o Brasil está caindo em termos táticos. Tite errou na convocação (Daniel Alves foi uma brincadeira de péssimo gosto), na escalação e na leitura dos jogos. Com Neymar melhor acompanhado, era esperado que o Brasil confirmasse o favoritismo de antes da Copa, onde mostrou uma grande solidez como time, mas a contusão (mais uma) de Neymar ainda no primeiro jogo atrapalhou ainda mais a preparação para os demais jogos, onde o Brasil sofreu para ganhar da Suíça e teve a sorte de pegar uma Coreia do Sul de peito aberto nas oitavas. Um jogo contra a Croácia, que eliminou o Japão nos pênaltis e jogando pior, parecia o passaporte para as semifinais. O que vimos foi um jogo controlado por Modric e mesmo com o Brasil transformando o goleiro Livakovic no nome da partida, o time sofreu um gol inacreditável quando faltavam escassos quatro minutos na prorrogação. Com sete jogadores no campo de ataque. Nos pênaltis, mais polêmica. Na minha visão, uma polêmica vazia.
Não faltam exemplos de equipes deixando o principal batedor por último e dar certo, vide o que houve com o Flamengo na final da Copa do Brasil. Naquele mesmo dia, Argentina e Holanda colocaram seus principais jogadores e capitães para bater o primeiro pênalti. Messi fez. Van Dijk perdeu. O Brasil começou a disputa com o jovem Rodrygo. Perdeu. Neymar é um dos grandes batedores do futebol mundial, mas a batida de Marquinhos na trave fez com que o jogador do PSG sequer batesse um pênalti. Sinceramente pensava que o Brasil seria hexa, lembrando até mesmo o que aconteceu em 2002, quando o caminho era aberto pelas circunstâncias das outras seleções e o Brasil de Ronaldo e Rivaldo se aproveitou da situação. O Brasil de Neymar e Tite não aproveitou. Tite já avisou que não ficaria com a seleção antes da Copa, mas mesmo que nada falasse, não tinha como segurar o treinador, que saiu da Copa menor do que entrou, com todos os erros, alguns pequenos, se transformassem em grandes vacilos. Um treinador estrangeiro é praticamente uma exigência! O mesmo acontecendo com Neymar. Dessa vez Neymar não saiu rolando ridiculamente pelo gramado. Ele chegou a fazer um gol decisivo contra a Croácia, que deveria garantir o Brasil nas semis. Porém, não há como negar que Neymar jogou mal contra a Croácia e ficou a sensação que Neymar, aos 30 anos, perdeu sua verdadeira chance de ganhar uma Copa do Mundo. Em 2018 o Brasil saiu da Copa com a sensação que a próxima Copa seria à vera. Chegou 2022 e nada aconteceu. Dessa vez o Brasil precisa de uma reformulação, que não veio com o fatídico 7x1 e não se sabe se virá dessa vez. Já se vão vinte anos sem Copa do Mundo. E pela empáfia de muita gente influente, o futebol corre o risco de cair na mesma vala da F1 para o Brasil. Apenas doces e distantes lembranças.
Mas a Copa continuou. E como continuou. Argentina e Holanda fizeram um jogo cardíaco no mesmo dia da eliminação brasileira e Messi se transformava no nome da Copa. Ele havia marcado gols decisivos contra a Austrália (era esperado a Dinamarca, outra decepção nessa Copa) e contra a Holanda, que saía do seu DNA de jogo bonito para chuveirinhos na área. E foi assim que o gigante Weghorst conseguiu o empate no último lance, numa jogada ensaiada e friamente executada. Novamente pênaltis e um personagem surgia na Argentina: o goleiro Emiliano Martínez. Dibu garantiu a Argentina nas semifinais, mas não teria clássico contra o Brasil na fase seguinte. Porém, não faltaram clássicos. A atual campeã França chegou ao Catar mais parecendo uma enfermaria, com vários dos seus craques ficando pelo caminho, incluindo Karim Benzema, recém coroado como melhor do mundo. Porém, a França hoje vive o que era a característica do Brasil em outros anos. Se dizia que era possível montar várias seleções brasileiras competitivas, mas hoje quem se dá esse luxo são os franceses. Quem aparecia na seleção gaulesa, dava conta do recado. Mbappe fazia uma Copa exuberante, com arrancadas explosivas rumo ao gol. Kylian era o artilheiro da Copa quando houve o embate entre França e Inglaterra. Um jogaço! Pelo o que vinha fazendo, a França era favorita, sem contar a sempre amarelada da Inglaterra nas Copas. Cantando pela primeira vez em setenta anos 'God save the king', os ingleses surpreenderam ao jogarem de igual para igual contra os velhos rivais, sendo muitas vezes superiores. Porém, a força da França se mostrou grande demais para os ingleses, que viu Harry Kane perder um pênalti decisivo no final da partida.
Era esperado que a França encarasse Espanha ou Portugal na semifinal, saindo de uma emocionante disputa ibérica. Novamente esqueceram de avisar aos marroquinos. Com a globalização do futebol, seleções que antigamente não colocava medo em ninguém apresentam grandes jogadores em seu plantel e no caso do Marrocos, havia Hakimi e Ziyech. Ambos nascidos na Europa e atuando no principal palco do futebol, mas preferindo representar o país dos seus familiares. Marrocos já tinha despachado a Bélgica e liderado um grupo que era zebra. Pegou a Espanha e seu irritante Tiki-Taka que só deu um chute a gol e venceu nos pênaltis. Contra Portugal, Marrocos não enfrentaria de cara Cristiano Ronaldo. Em litígio com seu clube, CR7 fazia uma Copa discreta, mesmo com o recorde de cinco Copas marcando pelo menos um gol. Nas oitavas de final, o inacreditável. Cristiano estava no banco. Na hora dos hinos, os fotógrafos preferiam flagrar Ronaldo com cara de poucos amigos no banco, enquanto seu substituto dava show ao marcar um hat-trick contra o ferrolho suíço, que funcionou contra o Brasil, mas tomou de 6x1 para os lusos. Com uma seleção poderosa, Portugal era favorito contra Marrocos, que tinha a melhor defesa da Copa e se provou contra os lusos. Marrocos marcou 1x0 e não seria vazado, tornando o goleiro Bonou numa das sensações e se tornando o primeiro país africano e árabe na semifinal de uma Copa. A torcida marroquina, na mesma forma que os demais países árabes, tornaram o clima dos estádios bem intimidante. Claro, sem contar o anfitrião Catar, que se tornou o primeiro país-sede a perder todos os seus jogos, mostrando uma seleção fraquíssima.
Apesar da torcida zoeira para uma final Croácia x Marrocos, o futebol merecia Argentina x França. E assim foi. A Argentina deu um show contra os croatas, aplicando um categórico 3x0 que fez muita gente agradecer à Tite de livrar o Brasil da sanha dos argentinos e de Messi. A França teve mais trabalho contra Marrocos, mas as individualidades fez com que os europeus tentassem o primeiro bicampeonato em sessenta anos. A perspectiva de uma final entre argentinos e franceses fazia com que esse jogo fosse um dos mais esperados dos últimos tempos, principalmente com o choque entre Messi e Mbappe. Os dois tinham contas a acertar com o destino. Messi tinha deixado para traz a desconfiança dos próprios argentinos e tinha levado sua seleção para a final. Se em 2014 teve a preciosa ajuda de Dí Maria, dessa vez Angel passou boa parte da Copa machucado e Messi contou com o auxílio de jovens jogadores que tinham Lionel como ídolo quando crianças. Todos queriam que o título fosse para Messi, mas os franceses não pensavam assim e Mbappe, aos 23 anos, queria mostrar que entraria para a história do futebol. Armava-se um duelo de titãs.
Muitas vezes a expectativa para um final de Copa se desnuvia pela tensão de uma partida tão importante. Porém, tivemos o verdadeiro privilégio de assistir um jogo que será contado por décadas a fio, assim como me foram contadas histórias de Brasil x Itália em 1970. Domingo, dia 18 de dezembro de 2022, foi um dia que ficará para sempre marcado para todo amante do esporte. Vimos duas figuras gigantescas se chocarem num jogo épico. O primeiro tempo foi todo da Argentina. Di Maria retornou a equipe muito bem, correu como nunca, mas era Messi quem acabava com o jogo com passes incríveis. Messi marcou, deu carrinho, comandou e fez mais um gol, o primeiro. A Argentina chegou aos 2x0 e parecia se encaminhar impávido rumo ao título. Mas todo portenho adora um tango e esse ritmo musical é marcado pelo drama. Mbappe era uma figura praticamente nula, assim como a França. Quando o gás de Di Maria acabou e ele foi substituído, a França sentiu cheiro de sangue. Mbappe sentiu cheiro de sangue. Uma bobeada da defesa e Kylian fez o primeiro gol igual à Messi, de pênalti. Dois minutos depois, Mbappe marcava o segundo num belo gol. Faltavam dez minutos e a Argentina sentia o golpe e a saída de Di Maria, mas os deuses nos presentearam com mais trinta minutos de futebol, drama e brilho. Brilho de Messi, que marcou seu segundo gol quando faltavam dez minutos para o título, meio que redimindo o erro do segundo gol da França, quando perdeu a bola no meio campo. Brilho de Mbappe, que bateu um pênalti quando faltavam cinco minutos, marcando um hat-trick, o primeiro em finais desde 1966.
Ainda faltava um bom coadjuvante. Com a saída de Di Maria, que chorava de alegria e tristeza no banco na medida em que o jogo desenrolava, veio Emiliano Martínez. No última lance da prorrogação, o goleiro do Aston Villa defendeu um chute de Muani que selaria o título da França. 3x3. Disputa de pênaltis. Mas nem de longe parecia as truncadas decisões de 1994 e 2006. O mundo tinha visto a maior final da história de 92 anos de Copa do Mundo. Argentina e França mereciam o título. Messi e Mbappé mereciam o título. Não houve vilões. Lionel e Kylian converteram seus pênaltis. Muani marcou o seu, evitando a pecha de infame, mas não adiantou muito. Martínez já tinha defendido a penalidade de Comam e Tchoumani tinha chutado para fora. O obscuro lateral Montiel, que com um toque de braço havia cedido o último pênalti da França, deslocou Lloris e deu o terceiro título para a Argentina.
Poucas vezes em nossas vidas ficou a clara e nítida impressão de que a história havia sido feito nos nossos olhos. Nos últimos anos foi muito difícil dizer que uma Copa pertenceu a um único jogador. Isso, desde 1986 com Maradona. Trinta e seis anos depois, podemos dizer que essa Copa foi de Messi. Se faltava algo para transformar Lionel Messi numa lenda viva, agora não falta mais. Porém, com oito gols nessa edição (mais gols desde 2002) e doze no total, Kylian Mbappe caminha a passos largou para chegar próximo aonde Messi está nesse momento. No fim, podemos dizer apenas uma coisa:
Obrigado, futebol!
Com esse post, encerro o ano de 2022 não falando de F1 dessa vez, mas de um momento histórico do esporte e com a esperança de que, assim como domingo, os tricolores acabem perdendo no fim...
Feliz Natal, um 2023 cheio de paz a todos!