A F1 está sendo dominada pela Mercedes desde 2014 e a temporada de 2020 apenas confirmou o que foi visto na pré-temporada. Lewis Hamilton conquistou onze vitórias em dezessete corridas, não dando a mínima chance a um apático Valtteri Bottas. Chato, não? Olhando o contexto do que foi essa temporada e saindo um pouco dos frios números, não foi bem assim. Talvez de todos os anos em que a Mercedes dominou a F1, o ano de 2020 tenha sido o melhor em termos de corridas emocionantes e histórias para contar. Além do que, quase nem tivemos temporada.
Um ano atrás falava-se de uma gripe surgida na China que estava assustando as autoridades locais e a OMS, pois tratava-se de uma doença nova e muito contagiosa. No entanto, nossa vida seguia tranquila e normal no resto do planeta, porém, esse vírus foi se espalhando aos poucos, aumentando seus tentáculos com uma velocidade alarmante a ponto de se tornar uma pandemia mundial. A F1 completou sua pré-temporada normalmente, mas quando partiu para Melbourne, todos estavam assustados. Eventos esportivos eram discutidos diariamente, além de que o público era proibido nas competições em andamento. Com a F1 a milhares de quilômetros de distância de sua base, o Coronavírus atingiu a categoria quando um membro da McLaren, já em Melbourne, foi contagiado pela perigosa doença, fazendo a equipe desistir da primeira corrida do ano. No outro lado do mundo, uma rodada da NBA era adiado quando se soube que um jogador estava contaminado e horas depois a NBA anunciou que a sua temporada estava suspensa. Mais cancelamentos ocorriam em todo mundo, enquanto a F1 se reunia para definir o óbvio. Com todas as pessoas envolvidas com o evento e viajaram horas (arriscando-se) com a sensação 'o que estou fazendo aqui', veio a notícia um pouco antes do primeiro treino livre: o GP da Austrália estava cancelado. Ainda nos Estados Unidos, uma confusão ainda maior afetou a abertura da Indy, com vários comunicados atabalhoados em sequência até cancelar a prova. Porém, a F1 vivia outro drama. Por se tratar de um evento global, as próximas corridas não seriam em cidades ou estados diferentes, mas em países diferentes, com formas de lidar com a doença distintas. Sem contar que a F1 iria viajar para a China em poucos dias.
Após algumas discussões e com mais e mais eventos sendo paralisados, a F1 anunciou o óbvio: a temporada estava suspensa. Todo mundo estava definitivamente afetado. Campeonatos nacionais e internacionais de futebol, Olímpiadas, Eurocopa, Copa América... tudo suspenso, adiado ou simplesmente cancelado. Todo mundo foi para casa. Sem ter o que passar na TV, os mais nostálgicos puderam ver corridas antigas e pensar: teríamos uma boa temporada? Ou sendo mais sincero? Vai haver temporada em 2020? A F1 hoje é um enorme negócio e ficar parado, sem aparecer na TV, é um grande prejuízo na certa, o mesmo acontecendo com a Premier League, Bundesliga e Champions League. Protocolos foram sendo feitos para tentar minimizar os efeitos da doença. Nos Estados Unidos, Nascar e Indy retornavam aos poucos cheios de medidas de proteção. Como falado mais cedo, o desafio da F1 era ainda mais complicado com corridas em diferentes países e cenários. Porém, o show não poderia parar. Conversas foram realizadas e com o ligeiro arrefecimento da pandemia, a temporada pode começar no segundo semestre e com várias novidades. Ímola, Kurtkoy e Nürburgring retornavam ao calendário após anos, além da adição de Portimão e Mugello. Seria uma temporada com apenas dezessete corridas (eram 23 no calendário original).
Poucos lembravam do que acontecera na Espanha em fevereiro, quando a Mercedes matou a pau todas as rivais, incluindo uma inovação para aquecer melhor os pneus. A primeira corrida na Áustria mostrou uma Mercedes negra (um afago em Hamilton, que se tornou um ativista anti-racista e palmas para ele) muito superior às demais. Foram quinze poles em dezessete corridas, além de treze vitórias. Foi um verdadeiro banho! Hamilton esteve simplesmente inspirado por uma nova vida, onde o inglês percebeu o tamanho de si mesmo e passou a lutar por o que ele achava certo, traduzindo em várias formas de protesto ao longo do ano. Se antes isso poderia afetar Hamilton a ponto de atrapalhar sua vida dentro das pistas, aos 35 anos de idade e mais sábio, isso na verdade ajudou-o a se tornar ainda mais forte nas pistas. Hamilton teve um ano de ouro, onde se igualou a Michael Schumacher como o maior campeão da história da F1, além de superar o mítico alemão em número de vitórias, chegando a incríveis 95 triunfos na F1, sem contar a inacreditável marca de 98 poles.
Porém, fica a pergunta: dentro do contexto histórico, esses números superlativos de Hamilton o colocam em que patamar na comparação à outros pilotos históricos? Hamilton tem atrás de si uma supermáquina chamada Mercedes e comandada por Toto Wolff. O austríaco, juntamente com Niki Lauda, construiu uma das melhores equipes da história da F1. Além de construir carros imbatíveis nas pistas, a Mercedes parece infalível em termos de tática, parecendo sempre ter uma contingência se for necessário. Claro que dentro dessa armadura houve pequenas rachaduras, como em Sakhir, mas de modo geral a Mercedes parece sempre pronta contra qualquer ataque de suas rivais. Hamilton é uma parte importante dessa engrenagem e seu principal objetivo é ser um algo a mais quando é necessário. E Lewis tem o talento para isso. Contudo, o inglês não se vê na necessidade de usar isso no momento. A Mercedes aprendeu a lição de que ter dois galos no mesmo galinheiro pode ser um problema. Somente pela enorme diferença que tinha sobre as demais os alemães não perderam o título em 2014 e 2016, quando a briga Nico Rosberg e Lewis Hamilton esteve no auge. Com a aposentadoria precoce do alemão, Toto Wolff decidiu usar a velha tática da Ferrari nos anos de Schumacher, que é colocar um bom piloto ao lado de Hamilton para marcar os pontos necessários para conquistar o importante Mundial de Construtores, além de estar preparado caso algo aconteça com Hamilton. Valtteri Bottas é bem inferior à Rubens Barrichello, mas não se pode negar que o finlandês não cumpra seu papel em ser segundo piloto da Mercedes. Em condições de classificação Bottas ainda consegue fazer frente à Hamilton, mesmo que em ritmo de corrida isso não se repita. Na primeira corrida do ano na Áustria, Bottas venceu e nas demais corridas conseguiu completar dobradinhas que fez a Mercedes ser heptacampeã de Construtores com muita folga.
Contudo, Bottas está longe de fazer cócegas em Hamilton e com toda a vantagem da Mercedes, Lewis sabe que não precisa subir o seu sarrafo tão alto como pode, pois para bater unicamente seu companheiro de equipe para empilhar vitórias, isso simplesmente não é necessário. Porém, isso faz com que nós não possamos ver o melhor de Lewis Hamilton o tempo todo, mas quando há a necessidade, Hamilton ainda foi capaz de vencer com três pneus em Silverstone e conseguir uma vitória épica na Turquia, com pneus intermediários quase carecas e ainda manter um ritmo decente. Para completar, Bottas teve um ano abaixo da crítica, onde muitas vezes se meteu em enrascadas que o fizeram perder muito tempo e até sair do pódio. Na mesma corrida turca, Bottas rodou várias vezes e tomou uma volta de Hamilton. Quando Lewis foi acometido da Covid-19 e foi substituído por George Russell, Bottas foi engolido pelo jovem inglês, causando uma série de questionamentos sobre o nórdico na próxima temporada. Desempenhos irregulares deixaram o vice-campeonato de Bottas à perigo, mas o nórdico evitou um vexame maior. No entanto, está claro que Bottas não é piloto para vermos a enorme reserva técnica de Hamilton, fazendo que o contexto histórico seja complicado de entender. Enquanto isso, Hamilton vai se aproveitando da situação atual e capitalizando com números extraordinários, fazendo-o um gigante da F1.
Olhando para o resto do grid, talvez o piloto mais indicado para fazer o sarrafo de Hamilton subir seria Max Verstappen. O jovem piloto da Red Bull conquistou duas vitórias em 2020, mas pouco pôde fazer contra o poderio da Mercedes, principalmente porque esteve sempre sozinho contra eles, fazendo com que a Mercedes pudesse escolher mais de uma tática para derrotar Verstappen. No entanto, Max fez mais uma temporada sólida e acima das perspectivas do seu carro, enquanto a Red Bull sofria um duro golpe com a saída da Honda ao final de 2021. Os principais motivos de Verstappen ter ficado sozinho contra a Mercedes foi a falta de um bom segundo piloto na Red Bull. Albon é apenas consequência da arrogância de Helmut Marko, consultor da Red Bull e chefe do programa de jovens pilotos da companhia. Ao descobrir Vettel, Ricciardo e Verstappen, Marko passou a usar métodos draconianos para com seus jovens pupilos, os dispensando quando os seus altos requisitos não eram atingidos. O problema é que um jovem piloto talentoso nem sempre evolui com a mesma velocidade de outro e muitas vezes é preciso paciência, algo que falta à Marko, que se descobriu sem pilotos para colocar na sua equipe. Gasly fez uma boa temporada com a Toro Rosso e foi açodadamente para a Red Bull, resultando numa temporada horrível em 2019. Sem pilotos para colocar no seu time júnior, Marko teve que 'ressuscitar' Kvyat e Albon, ambos dispensados do programa Red Bull. Se de Kvyat nada podia esperar mesmo, Albon fez um bom papel e Marko efetuou a troca com Gasly. Para essa temporada, mais maduro, Gasly fez uma temporada sólida, incluindo uma surpreendente vitória em Monza, enquanto Albon desmoronou frente à força de Verstappen. O tailandês ainda conquistou dois pódios, mas em nenhum momento andou no nível de Max e muitas vezes jogou pontos importantes fora, fazendo Alex terminar apenas em sétimo no campeonato. Um rendimento lamentável. Tão lamentável que forçou a Red Bull a rever seus conceitos e pela primeira vez desde 2007 trouxe um piloto de fora do seu programa (até porque lá não tem ninguém pronto...): Sérgio Pérez.
Checo começou o ano sob suspeita. Seu carro, o novo Racing Point, era uma cópia descarada da Mercedes do ano passado, causando a ira das equipes do pelotão intermediário. Após vários recursos e uma multa, o carro foi considerado legal, mas nem assim a temporada de Pérez foi tranquila. No meio da temporada ele foi diagnosticado com Coronavírus e ficou duas provas de fora. Na Turquia, viu seu companheiro de equipe ficar com a pole. Para piorar, a Racing Point anunciou que mudará de nome novamente, se transformando em Aston Martin e com isso, contratou Sebastian Vettel. Como o sobrenome do seu companheiro de equipe e do novo dono eram os mesmos, Pérez foi sacado da equipe que ajudou salvar dois anos antes. Tudo levava a crer que Pérez sairia da F1 por falta de oportunidades, quando fez a corrida de sua vida em Sakhir, ao sair de 18º para primeiro numa das maiores remontadas da história da F1. Com a Red Bull manquitolando com Albon e Pérez, em ótima forma, no mercado, o match foi imediato e Sergio Pérez terá a missão de enfrentar Max Verstappen com a Red Bull, além de finalmente um carro de ponta nas mãos. Já Lance Stroll teve alguns brilharecos, como a pole na Turquia e a liderança em boa parte da prova, além do pódio em Monza e Sakhir, mas no geral, o canadense teve outra temporada fraca, só se mantendo na F1 unicamente por nepotismo.
Uma das equipes que estavam no pelotão intermediário era a Ferrari. Isso mesmo. Os italianos construíram um carro muito ruim em 2020, sem contar a polêmica do motor do ano passado, onde não faltavam suspeitas de que o propulsor italiano de 2019 estava fora do regulamento. Um acordo secreto com a FIA fez com que a Ferrari mudasse seu motor, mesmo que as demais equipes reclamassem dos resultados obtidos ano passado. De uma hora para outra, não apenas a Ferrari, mas suas duas clientes se tornaram os carros mais lentos do pelotão em linha reta. Coincidência, não? A Ferrari passou por vexames históricos, como em Monza e Spa, mas conseguiu pódios pelo talento dos seus pilotos, particularmente Leclerc, que conseguiu colocar a Ferrari várias vezes em posições acima do potencial do carro nas classificações, além de ter feito várias largadas agressivas. No fim o monegasco ainda se destacou bastante, indicando que será o futuro da Ferrari, quando houver recuperação. Já Vettel... O alemão teve uma temporada esquecível, onde não se entendeu com o carro e a cúpula da Ferrari. Dispensado da equipe antes mesma da temporada começar, Vettel achou abrigo na Aston Martin, mas suas atuações pífias ao longo do ano mancharam um pouco a imagem de multi-campeão que tem. Fora do ambiente carregado da Ferrari, Vettel terá sua última chance de se manter competitivo na F1. O lugar de Vettel será ocupado por Carlos Sainz, que vem de ótima temporada com a McLaren, incluindo um segundo lugar em Monza. A McLaren começou o ano em sérias dificuldades financeiras por causa do Coronavírus, mas se recuperou na pista, com Lando Norris e Sainz formando uma dupla muito forte ao longo do ano, colocando o carro entre os dez primeiros de forma constante. Norris conseguiu seu primeiro pódio na Áustria, enquanto Sainz o fez em Monza. Com muito talento, a equipe conseguiu tirar da Racing Point o terceiro lugar do Mundial de Construtores na última corrida do ano, garantindo uma importante injeção de dinheiro, inclusive para pagar os motores Mercedes e o salário do novo piloto, Daniel Ricciardo.
A Renault de um passo à frente em 2020, com seus primeiros pódios nessa nova administração, contudo, a temporada não começou de forma harmônica com a saída de Ricciardo para a McLaren, deixando o chefe de equipe Cyril Abiteboul muito descontente. No entanto, Ricciardo respondeu dentro da pista com ótimas performances e um bom quinto lugar no Mundial de Pilotos, derrotando sistematicamente o eterno promissor Esteban Ocon. Para o ano que vem Fernando Alonso retornará à F1 com seu talento e sua enorme exigência, sem contar o mau humor quando as coisas não acontecem do jeito certo. Renomeada Alpha Tauri, a antiga Toro Rosso aproveitou-se de ter em suas fileiras um mordido Pierre Gasly para conseguir uma boa temporada e sua segunda vitória na F1. Kvyat fez outra temporada ok, mas longe de impressionar e acabou substituído pelo japonês Tsunoda, protegido da Honda. Sofrendo com a falta de potência dos motores Ferrari, Alfa Romeo e Haas fizeram uma temporada muito ruim e com poucos pontos. Porém, a Alfa decidiu manter seus dois pilotos, enquanto a Haas, pressionada por uma crise econômica, trocou seus dois pilotos contratados por dois jovens impostos. Mick Schumacher é protegido pela Ferrari e chega com moral pelo título da F2. Já o sem noção dentro e fora das pistas Nikita Mazepin chegou pela grana do papai bilionário. O ano de 2020 também foi marcado pela saída da família Williams da F1. Foram anos de gestões onde o velho Frank (que está hospitalizado) comandava sua equipe da mesma maneira dos anos 1990, porém, isso ficou tão ultrapassado que sua equipe acabou se tornando a pior da F1. Nem mesmo a chegada de sua filha Claire melhorou a situação, principalmente quando a diferença do motor Mercedes para as demais diminuiu. O time foi vendido por um conglomerado americano. O time teve como destaque Russell, que conseguiu muitas vezes colocar a Williams no Q2, quando o normal seria a última fila, sempre tendo como representante o fraquíssimo Nicholas Latifi. O nome Williams se manteve, assim como seus pilotos. Só se espera que essa situação atual mude. Após três anos o Brasil teve um piloto na F1, com Pietro Fittipaldi substituindo Grosjean na Haas nas duas últimas corridas de 2020. Foi o quarto representante do clã Fittipaldi na F1, além de pela primeira vez na história da categoria três gerações de uma mesma família ter entrado na pista, mas dificilmente Pietro terá uma terceira corrida. Mesmo tendo sabidamente um carro ruim nas mãos, o brasileiro não impressionou a ninguém no Oriente Médio, não saindo da última posição. O trabalho de Pietro não foi ruim, muito pelo contrário, mas não fez algo a mais, como Russell e Leclerc fizeram esse ano.
Sem briga pelo campeonato, a F1 2020 teve com destaques suas corridas sempre agitadas e alguns resultados surpreendentes. Gasly venceu em Monza após uma corrida agitada, com vários acidentes e uma punição à Hamilton. No anel externo de Sakhir, Pérez conseguiu uma recuperação incrível rumo à vitória. Mesmo havendo um abismo entre Mercedes e Red Bull e o resto, onze pilotos diferentes foram ao pódio em 2020, enquanto as novas pistas de Portimão e Mugello foram um sucesso de crítica e público. Houve chuva em algumas corridas que transformaram as provas, além de pneus que estouraram sem aviso em Silverstone e um acidente gravíssimo de Romain Grosjean, marcando essa temporada. Nesse caso, o criticado Halo fez bem o seu papel, salvando a vida do francês, que se despediu da F1 da forma como ficou conhecido: num acidente.
Com tantas equipes em crise por causa do Coronavírus, o novo regulamento foi adiado para 2022, tornando o campeonato do ano que vem com um cenário bem parecido com o atual. A Mercedes surge como grande favorita, principalmente com Hamilton estando numa ótima fase. Bottas terá que se desdobrar para ficar outro ano na Mercedes após 2021, principalmente com Russell se mostrando um piloto confiável para a Mercedes. Tendo agora Pérez, a Red Bull espera ter mais chances de atacar a Mercedes, com Verstappen como piloto principal. No entanto a Red Bull ainda corre atrás de um motor para 2022 em diante. A McLaren terá o motor Mercedes e Daniel Ricciardo como esperança de mais um passo adiante. Já a Ferrari tende a continuar sofrendo com um carro ruim e um motor que precisa fazer nome à sua equipe. Tendo Alonso como principal piloto, a Renault espera se preparar para dar o passo decisivo para 2022, isso, se Alonso tiver paciência para tal. Os rádios da Renault serão divertidos. Agora chamada Aston Martin, a Racing Point receberá Vettel como primeiro piloto ou mais um mentor para Lance Stroll? São muitas perguntas a serem respondidas, mas somente em 2021 saberemos disso. Porém, o principal é que tenhamos em 2021 mais normal não apenas na F1, mas em nossa vida.