23 de junho de 2019. Lewis Hamilton recebia a bandeirada para o Grande Prêmio da França em Paul Ricard. O inglês conquistava sua sexta vitória em oito corridas na temporada, onde a Mercedes seguia invicta. Até o momento 2019 vinha sendo uma temporada sofrível e decepcionante para todos que acompanham a F1. Não demorou para que comparativos com as tenebrosas temporadas de 2002 e 2004 surgissem. Além de Hamilton praticamente garantir seu hexacampeonato, as corridas estavam deixando muito a desejar, mas a prova em Paul Ricard tinha sido a pior de todas. Simplesmente nada havia acontecido no tradicional GP francês. Foi um porre! Os incautos não demoraram a lacrar: a F1 estava morrendo!
Essa frase eu ouço desde criança, quando eu ainda estava deslumbrado com a F1 que vivia seus melhores momentos, mas haviam muitas críticas. Dessa vez, naquele final de junho, a F1 parecia que estava mesmo num momento crítico. A Mercedes não tem culpa de ser mais competente do que suas rivais, além de Lewis Hamilton ser um piloto num patamar acima dos seus concorrentes, mas parecia que a F1 caminhava para uma temporada das mais enfadonhas de todos os tempos, seguindo o domínio prateado da Mercedes comandada de forma talentosa por Toto Wolff. Porém, a F1 pareceu ter acordado após a horrorosa corrida em Paul Ricard e o ano de 2019 foi um dos mais emocionantes e legais da última década, mesmo que os títulos de Mercedes e Hamilton tenham sido confirmados com alguma antecedência. Houveram grandes corridas depois da França, com algumas que entraram para a história. Como toda grande temporada, houveram também polêmicas e muitas histórias para contar.
Ao final dos testes de pré-temporada em Barcelona, parecia que a Ferrari finalmente sairia de sua seca de títulos ao ficar com o melhor tempo na travada pista espanhola. Com Vettel ainda sendo a estrela da equipe, o alemão tinha tudo para se igualar a Hamilton em número de títulos e finalmente vencer pela Ferrari, emulando seu grande ídolo Michael Schumacher. Porém, a Mercedes não estava parada. Sempre correndo com pneus médios e duros, os germânicos não mostraram todo o potencial na Espanha e com um novo pacote ainda antes da primeira corrida, a Mercedes começou a temporada a todo vapor, quebrando o recorde de cinco dobradinhas consecutivas nas cinco primeiras corridas. Valtteri Bottas até tentou dar alguma resistência para Hamilton quando, após quatro corridas, tinha o mesmo número de vitórias do inglês e liderava o campeonato. Contudo, até a senhorinha que serve café em Brackley sabia que Hamilton não daria qualquer chance ao nórdico. A partir da Espanha, Hamilton emendou uma sequência de quatro vitórias consecutivas que matou qualquer chance de Bottas. Com o fim das férias da F1, Hamilton passou a administrar o campeonato, o mesmo acontecendo com a Mercedes. Com o campeonato a ser conquistado sendo uma questão de ‘quando’, não de ‘se’, o time passou a trabalhar no carro de 2020, mesmo não deixando o campeonato de 2019 de lado. A Mercedes tem uma gestão tão madura, que nenhuma brecha fica para trás. Quando houveram dificuldades durante as corridas, a Mercedes sempre foi a mais preparada e seus pilotos capitalizavam qualquer vacilo de suas rivais. O que não foram poucos.
Vettel já tinha sofrido com um jovem piloto em seu feudo. Quando Daniel Ricciardo chegou à Red Bull com toda a sua fogosidade, Vettel sentiu o golpe e acabou ficando atrás do australiano no campeonato. Vettel rapidamente se mandou para a Ferrari para ser o dono do terreiro, mesmo a Ferrari tendo um campeão como Kimi Raikkonen, mas com o finlandês já numa fase bem burocrática de sua carreira. Ao receber o imberbe Charles Leclerc na Ferrari, Vettel sentiu como nos últimos tempos de Red Bull. O monegasco não era subserviente como Raikkonen e tem a ambição de todo jovem piloto talentoso. Não demorou para Leclerc mostrar sua força ao ficar com a pole no Bahrein e dominar a corrida antes de ter um problema em sua Ferrari. Não demorou também para que os problemas começassem a ocorrer entre os dois pilotos da Ferrari. Em Monza, Rússia, Cingapura e principalmente no Brasil os dois pilotos da Ferrari tiveram contatos imediatos que deixaram Mattia Binotto, novo capo da Ferrari, de cabelos em pé. Leclerc venceu duas vezes consecutivas em dois palcos icônicos da F1 (Spa e Monza) e foi o piloto com mais poles no ano. Na Bélgica Charles mostrou sua personalidade ao vencer menos de 24 horas depois da morte de Anthoine Hubert, seu amigo desde os tempos de kart, que corrida de F2. Mesmo com apenas 21 anos de idade, Leclerc é daqueles pilotos feito de um material diferente. Vettel sentiu claramente o golpe e a frenética imprensa italiana já cravava que Leclerc é o futuro da F1, além de que Vettel poderia até mesmo se aposentar. O alemão, que foi pai pela terceira vez, teve seus momentos de brilho, como no polêmico Grande Prêmio do Canadá, onde liderou a corrida inteira até sair da pista e ser punido de forma inacreditável pela FIA. Numa das cenas da temporada, Vettel não estacionou seu carro no lugar correto, ameaçou não subir no pódio e no fim trocou a posição de Hamilton no parque fechado. No geral, mesmo tendo vencido em Cingapura em outro entrevero com Leclerc e a Ferrari, Vettel teve um ano opaco e que foi obscurecido pelo fenômeno Leclerc. A difícil administração dos pilotos dentro da Ferrari de certa forma ratificou a polêmica renovação de Bottas na Mercedes. Após um início de campeonato acima das expectativas, Bottas caiu no marasmo que marcou 2018 e sem contrato garantido para 2020, falava-se que ele seria substituído por Esteban Ocon, que era várias vezes focalizado dentro dos boxes da Mercedes, principalmente quando Bottas fraquejava.
Da mesma geração de Leclerc, Ocon seria uma nova chama dentro da Mercedes, mas que poderia incomodar Hamilton como Leclerc faz com Vettel. Vendo o que acontece na Ferrari, Wolff não perdeu tempo em renovar com Bottas, mesmo com muitas pessoas o criticando por isso, até porque Ocon acabou contratado pela Renault. Porém, a renovação de Bottas faz todo sentido. O nórdico não enche o saco de Hamilton e ainda garante pontos importantes para a Mercedes no Mundial de Construtores, que foi conquistado pela Mercedes pela sexta vez consecutiva com ampla vantagem. Bottas não fez um ano brilhante, mas ficou com o vice-campeonato com certa facilidade e está garantido em um carro de ponta em 2020. De ruim, apenas a separação com sua bela mulher.
Um dos grandes objetivos de Leclerc, além de derrotar Vettel, era também derrotar seu antigo rival Max Verstappen. O holandês vai se consolidando cada vez mais na F1 e sem perder sua velocidade, vai se livrando dos constantes erros que lhe caracterizava. Verstappen conseguiu duas vitórias emblemáticas em Zeltweg, onde ultrapassou Leclerc nas últimas voltas, e no confuso e eletrizante Grande Prêmio da Alemanha, onde Max fez cinco pit-stops. Verstappen conseguiu superar os dois pilotos da Ferrari numa disputa apertada no campeonato e com direito a três vitórias em 2019. O motor Honda, que era a grande incógnita da Red Bull, se portou muito bem e diferente dos anos complicados ao lado da McLaren. Não houveram quebras e a potência do motor Honda era totalmente compatível com as rivais, tirando a Ferrari, que se tornou o motor mais potente na segunda metade do ano. Porém, a Red Bull continuou com sua tradição de moer jovens pilotos. Com a saída repentina de Daniel Ricciardo, a equipe teve que se contentar com Pierre Gasly, que tinha apenas um ano de F1 e estava claramente cru. O francês demonstrava desde os testes pré-temporada que não estava no nível de Verstappen e fez uma temporada pífia antes de ser trocado por Alexander Albon.
O tailandês teve uma trajetória no mínimo inusitada no último ano. Antigo piloto do programa Red Bull, Albon foi dispensado, o que não o impediu de fazer bom papel na F2, mas sem muitas chances na F1. Sem alternativa, Albon tinha até assinado com a horrorosa F-E quando foi novamente recrutado por Helmut Marko para correr na Toro Rosso. Parecia uma temeridade, mas Albon se comportou muito bem em ritmo de corrida e superou o experiente Daniil Kvyat antes de subir para a Red Bull. Sem estar acostumado com o carro e sem ter a velocidade de Verstappen, mas sendo bem mais consistente do que Gasly, Albon garantiu seu lugar na Red Bull em 2020, mesmo que não tenha conseguido seu esperado pódio, tendo a melhor oportunidade em Interlagos, quando foi atingido por Hamilton nas voltas finais. Ao contrário do esperado, Gasly cresceu quando deu o passo para trás na Toro Rosso e com performances sólidas, o francês alcançou o pódio de forma emocionante em Interlagos, garantindo um bom problema para a Red Bull, que tem dois bons pilotos para ser companheiro de equipe do diferenciado Max Verstappen. Enquanto Kvyat deu mais um neto para Nelson Piquet, conseguiu um pódio aleatório na Alemanha e esquenta o banco de algum piloto do hoje desértico programa de jovens pilotos da Red Bull.
Novamente o abismo entre as equipes top-3 e as demais ficou evidente. Somente nas corridas excepcionais em Hockenheim e Interlagos, o domínio de Mercedes, Ferrari e Red Bull foi quebrado. Havia uma boa expectativa com relação a Renault, com a chegada de Daniel Ricciardo e o apoio de uma montadora tradicional como a Renault, mas o time naufragou diante da incapacidade de um time que tem em Cyril Abiteboul um dirigente inábil. Ricciardo e Hulkenberg faziam o que podiam, mas a falta de consistência da Renault assustava, com desempenhos como o de Monza, quando Ricciardo foi quinto e outras em que o time nem passava para o Q2. Isso tudo acabou sobrando para Hulkenberg, que após dez anos na F1 foi demitido pela Renault e sem vagas abertas nas outras equipes, o alemão deverá ficar de fora da F1. Muito bem conceituado, Hulkenberg ficará mais conhecido pelo folclore de nunca ter subido ao pódio na F1. Quem se aproveitou da fraqueza da Renault foi a McLaren. Cliente da montadora francesa, a McLaren apostou numa dupla de pilotos jovem e motivada que deu vários bons dividendos para a equipe. Carlos Sainz saiu da sombra dos seus tempos de Red Bull para se tornar um dos destaques do ano, com belas exibições e um pódio em Interlagos depois de ter saído de último. Ao lado no novato Lando Norris, Sainz divertiu os fãs cantando Smooth Operator e deu um ar muito mais leve a antes carrancuda McLaren, principalmente dos tempos de Ron Dennis e Fernando Alonso. Norris se mostrou um jovem extremamente promissor e andou no mesmo ritmo de Sainz, além de ter divertido a todos com suas brincadeiras nas redes sociais.
Racing Point e Alfa Romeo, antigas Force India e Sauber, continuaram o trabalho de suas antecessoras, mas sem destacar muito. Escolhendo ter um piloto fraco para atender o novo dono da equipe (Lance Stroll), a Racing Point sofreu em depender unicamente do que o sólido Sérgio Pérez poderia fazer sem apoio de Stroll, que vai ficando na F1 enquanto seu pai vai tendo paciência em perder dinheiro com o filho. A Alfa Romeo teve um enredo parecido em apostar no veterano Kimi Raikkonen segurar as pontas, enquanto o novato Antonio Giovinazzi demorou a pegar no tranco, mas o italiano acabou até liderando uma corrida. Porém, a falta de desenvolvimento da equipe fez com que a Alfa Romeo tivesse dificuldades até mesmo de pontuar nas corridas finais. A Haas teve seu pior ano de sua curta existência, com uma falta de ritmo de corrida gritante, com Magnussen e Grosjean chegando a participar do Q3 no sábado para ficar fora da zona de pontuação no domingo. Por sinal, a dupla da Haas foi outro capítulo a parte com os dois chegando a bater rodas algumas vezes, tirando as já parcas chances da equipe marcar pontos. Por incrível que pareça, os dois tiveram seus contratos renovados, fazendo de Günther Steiner uma parelha com Abiteboul como o pior dirigente de 2019.
A tradicional Williams começou o ano com o pé esquerdo ao projetar o carro de forma irregular antes mesmo de começar a temporada e perdendo vários dias de testes. Quando o carro foi a pista, ficou claro que a Williams tinha, disparado, o pior carro do pelotão. Tendo o jovem protegido da Mercedes George Russell despontando, a Williams não teve a mínima condição de brigar sequer com o pelotão intermediário, no pior ano da equipe. Porém, uma das boas histórias de 2019 estava na Williams. Graças a patrocinadores polacos, Robert Kubica retornou à F1 oito anos depois do seu trágico acidente de rali em 2011. Olhando unicamente os números, a temporada de Kubica poderia ser um fracasso. Afinal, o veterano polonês tomou 21x0 de Russell e andou a maior parte do tempo em último. Porém, basta olhar a situação do braço direito de Kubica para perceber que o fato dele ter feito uma temporada completa de forma decente já foi um feito e tanto. E quem marcou o único ponto da Williams em 2019 foi Kubica, não Russell. Já a Williams segue seu calvário. Enquanto a McLaren já acertou uma parceria com a Mercedes para 2021 pensando em dar um passo adiante para retomar os tempos de vitórias, a Williams contratou Nicholas Latifi, um piloto canadense tão rico e ‘talentoso’ como o seu compatriota Lance Stroll. Um triste fim para a equipe de Frank Williams.
Enquanto todas essas histórias aconteciam, Lewis Hamilton caminhou impávido rumo ao olimpo do esporte. Foram onze vitórias e seis poles que fazem o cartel mágico de Hamilton chegar próximo da mágica marca centenária em ambos os itens. Não colocar Hamilton entre os grandes da F1 já pode ser considerado um absurdo. Resta saber o lugar de Hamilton entre esses gigantes. A Mercedes também vai marcando a história com seus títulos consecutivos e abrindo outras comparações. Quem é melhor, a Ferrari de Schumacher, Todt e Brawn ou a Mercedes de Hamilton e Wolff. Se o domínio da Ferrari foi mais gritante em seu tempo, a Mercedes tem rivais mais fortes e consegue ser bem mais forte do que elas, cobrindo qualquer gap que possa aparecer. Mesmo com a chegada de jovens estrelas como Verstappen e Leclerc, Hamilton vai se mostrando ainda em outro patamar e com a força da Mercedes, pode continuar dominando a F1 nos anos vindouros. Vettel teve até seus momentos de glória questionados e tentará dar a volta por cima numa Ferrari que já sofre com um jejum incômodo. A Honda, junto à Red Bull, quer voltar a vencer depois de um jejum maior ainda, consolidando um crescimento que Alonso e a McLaren não tiveram paciência em esperar. Mais leve, a McLaren espera brigar mais perto das grandes, assim como a Renault, que ainda espera que o seu investimento se pague. A esperança da Renault e das demais equipes médias é o novo regulamento para 2021, que mais uma vez promete facilitar as ultrapassagens, mas também cria um teto orçamentário que diminui o abismo entre as equipes. Para 2020 haverá a entrada da Holanda, surfando na Verstappenmania, e do Vietnã, país sem a mínima tradição, que entrará no lugar da tradicional corrida alemã.
Para quem imaginou a F1 morrendo, viu uma temporada cheia de ação e com várias corridas que entraram nas mentes dos fãs. Mesmo com Hamilton e Mercedes seguindo dominando, a F1 viu em 2019 uma das temporadas mais legais dos últimos tempos.
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