quinta-feira, 15 de abril de 2021

O agitador de homens


 No final de 2019 eu tive uma bela surpresa quando meu amigo/parceiro/irmão Márcio Madeira me avisou que tinha me indicado a receber o livro 'Ferrari: o homem por trás das máquinas', escrito pelo americano Brock Yates, lançado em 1991 e relançado quase duas décadas depois pela editora Best Seller no Brasil. Foi uma felicidade imensa, sem contar a honra da indicação. Raramente fui alvo de presentes e a biografia não-autorizada de Enzo Ferrari era um baita regalo. Na época tinha acabado de comprar o livro 'Primeira Guerra Mundial' de Martin Gilbert e por isso decidi o ler primeiro. Eu sou das pessoas que degustam a leitura e por isso sou bem lento, algumas vezes voltando algumas frases se aquilo não me fixou bem e por isso demorei um pouco a ler o belíssimo livro de Yates. Apenas em abril de 2021 terminei de ler (e degustar) o livro e agradeço ao Márcio e a editora pelo livro. Mas afinal, quem era Enzo Ferrari?

A primeira imagem que me vem à mente de Enzo Ferrari é de um senhor de idade, vestido impecavelmente atrás de uma mesa de escritório e com óculos escuros escondendo seus olhos, como se fosse uma máscara. 'Il comendatore' ou 'ingegnere', como gostava de ser chamado, Enzo Ferrari passava a sensação de uma pessoa que veio do nada, enfrentou verdadeiros gigantes da indústria automobilística com sua pequena equipe de corridas e os derrotou com uma mistura de talento, astúcia e inovação tecnológica. Enzo Ferrari seria um fidalgo, um cavalheiro do século 20. Brock Yates fez inúmeras entrevistas para desfazer todos esses adjetivos da figura nascida em Modena no desenlace do século 19. Enzo Ferrari era o filho mais novo de Alfredo, mas ao contrário do que se dizia, Ferrari estava longe de ser paupérrimo, inclusive praticando outros esportes antes de se apaixonar pelas corridas. Também não era rico e Enzo perdeu seu pai e irmão mais velho durante a Primeira Guerra Mundial, ele mesmo quase morrendo de uma doença pulmonar. 

A fidalguia de Enzo Ferrari estava longe de ser verdade, com o italiano sendo grosseiro com seus pares e subordinados, mas sendo um verdadeiro ator no momento de querer convencer algo que lhe seja favorável. Piloto de currículo medíocre, Enzo usou sua ligação com a Alfa Romeo para se promover junto à sociedade modenense e criar uma grande networtk em torno de si. Político e líder nato, Ferrari conseguiu o cargo de chefe de equipe da Alfa Romeo, mas acabou despedido um pouco antes da Segunda Guerra Mundial. A sua equipe de corridas já funcionava desde meados da década de 1920, conseguindo resultados fortes como equipe, ora satélite, ora oficial da Alfa Romeo. Nunca perdendo o foco do seu objetivo, construiu uma pequena fábrica na cidade vizinha de Maranello e após o conflito onde seu empreendimento foi bombardeado duas vezes, Enzo Ferrari construiu seu primeiro carro em 1947. Os resultados variavam na medida em que Enzo Ferrari entrava em conflito com seus chefes de equipe, engenheiros e pilotos. Na verdade a Ferrari nunca se firmou como inovadora. A cabeça dura de Enzo Ferrari fez com que a Ferrari demorasse a desenvolver as novas tecnologias, como o freio a disco e o refinamento da aerodinâmica. O primeiro túnel de vento da Ferrari só surgiria nos anos 1980. Para Ferrari, a potência do motor era tudo.

O relacionamento de Enzo Ferrari com as mulheres merece um tópico à parte. Para Enzo a grande maioria das mulheres eram tratadas como meretrizes que somente lhe davam prazer e seria mais uma figurinha de sua enorme coleção de conquistas. Seu longo casamento com Laura Garello foi bastante infeliz e pontuado por várias infidelidades por parte de Enzo. Porém, do relacionamento conturbado nasceu Dino Ferrari, que morreria ainda aos 24 anos de idade, para desgosto de Enzo. Ou seria remorso? Com os negócios sempre à frente de tudo, Enzo Ferrari nunca se dedicou à família. Por muitos anos ele viveu no segundo andar sobre a Scuderia, de onde da oficina os funcionários ouviam as constantes brigas com Laura. Para Enzo, não existia ceia de Natal se um negócio podia ser fechado. Dentre suas inúmeras amantes, nasceu o segundo filho de Enzo, Piero Lardi Ferrari, que só assumiu o sobrenome do pai após a morte de Laura, já no final dos anos 1970.

Quando a sua equipe começou a se tornar gigante no cenário internacional, Enzo Ferrari passou a menosprezar mais e mais os seus pilotos, achando que estava dando uma grande honra em lhes oferecer seus veneráveis carros para ganhar corridas pelo mundo. Pagando salários miseráveis, Enzo Ferrari encerrou o contrato com vários dos seus pilotos de forma litigiosa, mesmo os campeões. Claro que haviam os favoritos. Eram os pilotos que corriam com tamanha agressividade e tenacidade, que poderiam levar o nome de Ferrari à vitória não importando o custo. Inclusive a vida. Tazio Nuvolari, o pouco conhecido Guy Moll e Gilles Villeneuve são exemplos de pilotos que Enzo Ferrari admirou até o fim da vida por não medirem esforços para ganhar. Claro, com um carro da Ferrari.

Sempre pensando em sua equipe de corridas, Enzo Ferrari começou a construir carros de alto rendimento, mas o dirigente pouco ligava com os veículos de passeio que saíam da fábrica de Maranello, tratando com desdém até mesmo os clientes que pagavam muito caro por um carro da Ferrari. A famosa negociação com a Ford, da onde surgiu o clássico instantâneo 'Ford vs Ferrari', terminou no momento em que a Ford insistiu que também mandaria na equipe de corrida. Enzo mandou os americanos embora, mas vendeu (mais barato) a fábrica para Fiat anos depois não por nacionalismo, mas por que ele continuaria mandando na equipe de corrida. Com seu auto-exílio em Modena, Enzo Ferrari passou a depender o que seus chefes de equipe o diziam por telefone ou reuniões. Isso causou um sem número de problemas para a gestione sportiva. Lembram da famosa cena do filme 'Rush', onde o personagem de Niki Lauda criticava o carro da Ferrari e era repreendido pelo chefe de equipe, dizendo que não poderia falar aqui de uma Ferrari? Aquilo aconteceu várias e várias vezes ao longo dos anos, deixando Enzo Ferrari mudo dos problemas. A derrota acontecia por culpa dos pilotos, dirigentes inescrupulosos e organizadores que não queriam a Ferrari vencer. Nunca o carro.

Yates desconstruiu muito o que se pensava de Enzo Ferrari. Vulgar, mulherengo e pouco emotivo, Enzo Ferrari se isolava em sua Modena e pouco saía de lá. No máximo ia à Imola ou Monza nos treinos e assistia as corridas pela TV. Porém, isso não impediu, num mundo onde as informações não circulavam como hoje, que uma imagem fosse criada em torno de Enzo que o tornou uma figura endeusada na Itália. Muitas vezes a história era melhor do que o fato e assim surgiu a enorme figura mítica de Enzo Ferrari.

Contudo Enzo Ferrari demonstrou uma resiliência incrível para sair da classe média-baixa da Itália para realizar o seu sonho de se envolver com o automobilismo e conseguiu ainda mais, criando uma marca mitológica no mundo moderno. Enzo Ferrari gostava de se auto-proclamar um 'agitador de homens'. Ao invés de criar harmonia dentro da equipe, Enzo preferia colocar seus engenheiros uns contra os outros, o mesmo fazendo com seus pilotos. Essas brigas tornaram o ambiente dentro da equipe Ferrari num ninho de cobra, onde crises políticas e mesquinharias aconteciam aos montes, mas para Enzo, isso trazia o melhor dos seus subordinadores, fazendo com que a equipe melhorasse e o resultado seria a vitória no domingo.

O livro conta a história de Enzo Ferrari sem as amarras de uma biografia 'oficial' e entrando com minúcias na fechada vida pessoal do mito italiano, além de ser um verdadeiro e delicioso passeio pelo mundo do automobilismo por quase setenta anos, além dos bastidores agitados da Scuderia Ferrari. Além dos dois filmes mencionados acima, fala-se que Michael Mann está produzindo um filme sobre uma parte da vida de Enzo Ferrari usando a obra de Brock Yates. Não importando qual época será a escolhida, pelo o que li, será um filme do nível de 'Rush' e 'Ford vs Ferrari'. Um verdadeiro clássico. 

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